sábado, 7 de março de 2015

Simon Stephens: cartógrafo do comportamento humano

por Luciana Romagnolli
Canção de Muito Longe. Foto de Jan Versweyveld.

Canção de Muito Longe ocupa posição particular na programação da 2ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo: é a única estreia mundial, coproduzida pela companhia holandesa Toneelgroep Amsterdam e pela MITsp. Habituado criar, no palco, abordagens inovadoras para repertórios clássicos e modernos do teatro e do cinema, o diretor Ivo van Hove desta vez encena um texto inédito, escrito especialmente para este trabalho, pelo dramaturgo britânico Simon Stephens.
Na manhã de sexta-feira (06), Stephens respondeu as perguntas do também dramaturgo brasileiro Leonardo Moreira (diretor da Cia. Hiato) e do público presente ao Sesc Consolação.

Para início de conversa, Leo Moreira perguntou como se deu a aproximação entre Stephens e o Toneelgroep. "Eu trabalhei com o Toneelgroep em 2010 (em Ubu), era uma coprodução com um grupo da Alemanha dirigido por Sebastian Nübling. Depois, eu assisti ao trabalho dos atores no espetáculo Tragédias Romanas e fiquei muito impactado, e percebi que o Ivo Van Hove é um gênio, um dos maiores diretores da Europa neste momento. Então, a gente começou a se paquerar, eu o entrevistei, ele me levou em Amsterdã para jantar e li um pedaço de uma peça minha", contou Stephens, bem-humorado. "Perguntei a ele por que não trabalha com autores vivos, o que é a questão central da tradição anglo-saxônica. No teatro britânico, o centro do trabalho está no dramaturgo, não tanto no diretor, e o Ivo gosta dessa posição autoral e tinha um pouco de relutância em trabalhar com autor vivo, com medo do que embate poderia causar. Naquele momento, a gente já se conhecia há cinco anos. E eu sou um cara muito legal, ele confiou em mim", disse. Também pesou na decisão o trabalho prévio do dramaturgo com o músico Mark Eitzel, de quem Van Hove é apreciador.  "Ele perguntou se eu escreveria com o Mark, porque ele queria conhecê-lo. Esse era o real motivo", brincou Stephens.
Eles decidiram então criar um monólogo para o ator Eelco Smits. "É sobre um investidor em Nova York, nascido em Amsterdã. Ele descobre que o irmão morreu de aneurisma e volta para o funeral. Para assimilar a morte, escreve uma série de cartas. Então, ao final de cada dia desse jornada de Nova York a Amsterdã, ele escrevia uma carta para o irmão, e o que a gente vê no espetáculo é esse processo de escrita", disse o dramaturgo.

Processo de escrita
Indagado por Leonardo Moreira sobre a sua experiência com processos de criação colaborativos, Stephens contou que escrevi 23 peças em processos dentro da sala de ensaio com atores e diretor. "Eu valorizo esse processo e espero sempre trabalhar dessa maneira", respondeu o britânico, ponderando que não existe uma maneira "errada ou certa de escrever peças". "Cada peça tem sua própria vida, é importante estar alerta para entender qual o processo que aquele trabalho específico requer", diz. "É muito importante para mim pensar durante os ensaios que não posso ser dogmático", completou.
Para Stephens, "a alegria de trabalhar com um diretor como o Ivo é que ele combina a sensibilidade  com sugestões (dos outros), imaginação e essse estado de alerta". "Isso faz com que o todo do trabalho seja muito mais consistente do que as partes especificas que o compõem. Um dos meus momentos prediletos é quando estou na sala de ensaio e percebo que o diretor encontrou coisas muito particulares e específicas que eu nem sabia que estavam lá".

No processo criativo de Canção de Muito Longe, Stephens e Mark passaram um tempo em Amsterdã "caminhando, conversando, encontrando as pessoas, entrevistando-as sobre a vida em Amsterdã e ficando bêbados juntos". "Algumas das partes principais da peça foram escritas em bares de Amsterdã e, depois de quatro ou cinco dias, a gente chegou a cristalizar as ideias principais que queria articular, sobre a cidade, o contraste entre neoliberalismo e liberalismo, sobre o fim do capitalismo, a relação entre Amsterdã e Nova York", recordou. "A gente escreveu tudo isso antes dos ensaios. E eu estava lá, nos ensaios, o que foi apavorante para o Ivo, porque ele nunca tinha trabalhado com um dramaturgo ao lado e estava com medo que eu dissesse 'não, está tudo errado, esta não é a minha peça'. Mas, o mais importante, é que eu descobri coisas que eu tinha escrito mas não tinha consciência. Essa palavra 'autor' sugere controle, como seu eu soubesse o que eu escrevo. Não, a gente não sabe tudo sobre os melhores trabalhos que realiza, e é superimportante celebrar essa falta de consciência. A gente tem que levar esse espírito para a sala de ensaio e olhar para essa coisa estranha que está começando a existir. Quando convenci o Ivo de que era esse o processo pelo qual eu estava passando, ele começou a relaxar com a minha existência".
Estrutura x intuição

Simon Stephens começou a escrever na faculdade, sem conhecimento específico de dramaturgia. Gostava de Martin Scorsese e de James Joyce. Um momento de virada veio quando um dos diretores do Royal Court Theatre rejeitou um texto seu com a justificativa de que "escrevia muito bem".  "Levou um tempão para eu entender o que ele queria dizer naquele momento. A palavra em inglês para dramaturgo é playwriter, mas o 'write' não tem nada a ver com escrever, vem da palavra moldar em madeira, é como a construção de um barco, você esculpe. Então, 'playwrite' é fazer uma peça e não escrever uma peça. E a escrita não é única habilidade necessária nem a mais importante. Na verdade, pode ser muito perigosa. O que a gente faz quando cria uma peça é mapear comportamento. Somos cartógrafos do comportamento humano. Algumas vezes, esses comportamentos que a gente mapeia precisam ser silenciosos, não articulados ou desonestos, então, a habilidade de escrever numa linguagem bonita pode destruir a obra de teatro", observou. 

O dramaturgo também contou que passou dez anos pensando sobre a "rejeição", o que o fez transformar seu processo criativo. "Escrevi peças em que eu tinha entendimento total do tema ou uma compreensão dos personagens, narrativas e estrutura antes de começar: quantas cenas quero ter, onde vão acontecer, quando, quem vai estar em cada cena, o que eles querem de cada um, o que fazer para conseguir o que querem e o que eles falam – eu sabia tudo isso e a última coisa que fazia era escrever. E, às vezes, eu escrevo muito rápido. Teve uma peça que escrevi em quatro dias. Eu passei dez anos pensando em como é moldar uma peça. Para mim, criatividade vem de uma tensão entre o intelecto e o instinto, você tem de ter consciência como artista de onde estão as suas forças e encontrar as suas fraquezas para trabalhar com isso. Se sua peça tem uma estrutura incrível, talvez você tenha que exercitar o seu instinto".


Outro assunto abordado por Leonardo Moreira foram as zonas de conflito geopolítico, um dos eixos curatoriais desta edição da MITsp. Historiador por formação, Stephens comentou que atualmente está em voga no Reino Unido a discussão sobre o que é teatro política e por que as pessoas não estariam mais escrevendo peças políticas. "Todo teatro é político, toda escolha é política, tudo é político", posiciona-se. "É inato do teatro ser político, mas não só, todas as peças de teatro são políticas, até mesmo Cats, porque é produto de uma série de escolhas. A essência daquele encontro onde a política reside vem do que o artista está produzindo na plateia", disse. E explicou: "Se você faz uma peça como Cats com a intenção de celebrar, entreter, fazer com que as pessoas se sintam bem com elas mesmas, então, de alguma forma, é uma peça de direita, conservadora, porque a ação que ela propõe é uma ação conservadora.  Eu nunca me interessei por isso nem como pensador político nem como pessoa na plateia. Gosto de peças de teatro que me deixem pouco confortáveis, que me coloquem em estado de alerta, que me tragam problemas. Isso é uma responsabilidade inata a um artista".
Para Stephens, em nossos dias, uma das estratégias centrais do conservadorismo é o pessimismo, traduzido na impossibilidade de "tornar uma pessoa melhor". "O conservadorismo é baseado no cinismo de que não há nada que se possa fazer. Então, a grande vitória da ala de direita na Europa é instigar os jovens à manutenção da apatia, à ideia de que não se pode mudar nada. Edward Bond (dramaturgo britânico) falou que não é coincidência nenhuma que essa cultura que primeiro nos deu a democracia e a lei, também nos deu o drama. A cultura grega antiga era baseada no entendimento de que a democracia e a lei não podem incorporar a incerteza, são construídas em cima da certeza, mas ser um ser humano é não ter certeza, é experimentar a contradição, e aí os gregos sabiam que precisavam de um espaço público onde investigar ou interrogar a incerteza, como uma forma de questionar a ética e a certeza da lei, e isso era teatro. Esse é o nosso trabalho. É questionar a incerteza de ser ser humano. E isso é uma função pública. O Bond me falou que, sem o teatro, não pode existir a democracia. Eu achei que ele era histérico, até ir a Nova York no ano passado e ver da maneira mais perniciosa como o capitalismo corrompeu o teatro sem caminho de volta: tudo é sobre dinheiro. Fazer as produções mais baratas possíveis, ser o mais famoso que você puder, ter um gesto por trás da peça que confirme essa ação com a plateia. Birdman, A Rede Social, todos esses filmes são a celebração dos psicopatas. Então, a minha função como autor politico de teatro é espalhar incerteza, contradição, medo nas minhas plateias. Fazer isso publicamente e usar todos esses elementos justapostos para que a gente consiga chegar nessa contradição. O que não me interessa é dizer à minha plateia o que pensar. Eu não escrevo discursos longos  sobre o terror ou o Afeganistão, economia ou o Iraque, porque para mim uma peça não é a respeito do que eu tenho a dizer. Meus espectadores são democratas, eles leem as mesmas coisas, os mesmos jornais, veem os mesmos programas. Se eu escrever uma peça dizendo que uma guerra é imoral, tudo o que estou fazendo é dar os parabéns a eles, dizendo: 'a opinião de vocês é a certa, parabéns, vocês venceram', e isso não vai mudar nada. Então, uma peça que está disfarçada de esquerda se torna uma peça conservadora. Na síntese da imagem, da linguagem e dos personagens, o seu trabalho é criar incertezas. Colocar a plateia para pensar", disse.

Diante da pergunta sobre por que fazer teatro hoje, Stephens contou que, em 20 anos de trabalho com essa arte, considerava-a "esquisita, de elite e marginal". "Foi apenas nesses últimos três anos que o teatro se tornou uma forma de arte radical, a mais urgente que existe, porque promove mudanças fora do teatro", contrapôs. A explicação veio das novas mídias e interações tecnológicas: "Fundamentalmente, porque é solicitado que a gente desligue o telefone. São duas coisas que você não encontra no mundo político de hoje: você desliga o telefone, se desconecta das redes sociais e e-mails, senta-se ao lado de quem nunca viu antes, todo mundo olha para a mesma direção e você compartilha uma experiência ao vivo, o diálogo acontecendo na sua frente. Não importa a qualidade, conteúdo ou tema daquilo que está sendo dito, isso em si já é uma experiência política. É a forma de arte mais humana numa cultura que está corroendo o ser humano. Acho que é mais importante do que em qualquer outro tempo fazer teatro hoje", disse.


sexta-feira, 6 de março de 2015

A Gaivota: preparativos para um suicídio no campo

A encenação como rascunho de reescritura circular do texto teatral

por Welington Andrade  

Escrita em 1896, A Gaivota, de Anton Tchekhov, denominada pelo próprio autor de “comédia em quatro atos”, trata de uma série de impasses e de crises que estão na base conceitual e formal de nossa modernidade crítica. O tema predominante é a frustração que os personagens experimentam nas duas frentes paralelas e interdependentes que alinhavam as ações transcorridas no palco: a vida amorosa e a vida artística. Há dois escritores e duas atrizes em cena, fadados ao fracasso pessoal e/ou profissional. Em torno deles transitam outras figuras cujas micro-histórias reverberam ou potencializam o que é vivido pelo quarteto central.

As cisões que se dão entre a elaboração de novas formas artísticas ou a continuidade dos dados da tradição, entre “amar sem esperança” ou “mergulhar nos redemoinhos da vida”, entre viver a solidão individual tão própria do gregarismo do campo ou fundir-se espiritualmente com as multidões das grandes cidades, como Moscou ou Gênova constituem as principais linhas de força da tão percuciente quanto dolorosa análise que Tchekhov empreende da crise da subjetividade vivida pelo homem moderno, cuja experiência individual é submetida a anulações e destruições ininterruptas, contínuas. Para a qual o suicídio final de Treplev é o último dos desenganos.

Eis que, então, a encenação de A Gaivota por Yuri Butusov priva do mesmo caráter de reescritura do texto original perseguido e realizado por Pierre Menard, o famoso protagonista do conto de Jorge Luis Borges. Também o diretor russo não se vergou ao prazer do anacronismo, “atraído por ideias primárias de que todas as épocas são iguais ou diferentes”. Antes disso, as formas teatrais a que Butusov deu luz lhe são originais e próprias, embora absolutamente coincidentes com as formas previamente concebidas por Anton Tchekhov.

O texto original tchekhoviano está aqui não integral, mas integramente preservado. Pela via do exercício de mimese? Decerto que não. Pois A Gaivota do Teatro “Satiricon” denominado A. Raykin sequer é exercício (essa também uma ideia primária que tanto fascínio tem exercido sobre artistas contemporâneos). O grande poder de comunicação que o espetáculo estabelece com a plateia reside em sua qualidade de rascunho permanente, rasgado no exato momento em que alguma forma possa se cristalizar e se tornar admirável. Direção, interpretação, cenografia e música, assim, concorrem para fazer do texto uma ruína circular (novamente Borges), inesgotável em sua capacidade de gestar o novo através do atávico, do pré-existente.

As distorções como seria de se esperar causam estranhamento, mas estão todas elas a serviço da engenhosa talvez mais apropriadamente industriosa conversão das versões do texto em versões da escritura cênica. O lirismo das falas originais (a partir de algum momento, não será mais possível falar em originalidade) transforma-se em gritaria, acompanhada por música muito alta, desagradável aos ouvidos. Butusov aqui tem a incrível capacidade de nos apresentar um Tchekhov altissonante e tonitruante, um meio-irmão de Zeus. O bucolismo da vida rural é retratado em meio a muita sujeira, muito detrito, muitos elementos desperdiçados em cena (sobretudo papéis rasgados e água derramada elemento recorrentemente explorado em seu volume incontido, disforme). Sobre este aspecto, vale registrar, então, o impactante trabalho de design cenográfico assinado por Alexander Shishkin.

A interferência regular do próprio diretor em cena, engrossando o coro de uma energia feérica, excitada, delirantemente pop, marca o caráter de ensaio que também advém das inúmeras cenas que se repetem com atores e inflexões diferentes. O importante é não se deixar aprisionar por nenhuma forma já conhecida, a fim de que não somente o não-Dumas que habita Treplev como também o não-Turgueniev que mora em Trigorin tenham plenas condições de existir cenicamente.

Mas se o teatro de Butusov é um teatro de ardor e de excessos, ao espectador atento é possível também usufruir aqui e ali de algumas irrupções de subjetivismo poético e de contenção. A ambiência pianística de muitas cenas, o uso de uma precária máscara de tosco papel e a percepção de que o histrionismo lancinante muitas vezes dissimula o mais pungente do patético são algumas delas.

Errática, rudimentar e anômala, a presente encenação de A Gaivota constitui um misto de método e loucura disposto à criação de uma experiência de impossibilidade ficcional exemplar: nela nós continuamos sendo nós mesmos, mas atingimos o centro de irradiação do universo tchekhoviano mediante a ocorrência de nossas próprias experiências pessoais.         
 


A Gaivota: Yuri Butusov tece uma ode ao fazer teatral

 por Michel Fernandes
  
Foto de Ekaterina Tsvetkova.

Trazer na abertura da 2º MITsp um espetáculo feito A Gaivota, texto em que o russo Anton P. Tchekhov utiliza uma linguagem metateatral para abordar as paixões humanas, por si só é bastante oportuno. Na montagem de Yuri Butusov o efeito é potencializado: ao explorar um sem número de possíveis leituras de uma mesma cena, ele valoriza o processo criativo e tece uma ode ao fazer teatral.

A cenografia do espetáculo já dá a chave do trabalho: são estruturas de madeira que, feito um negativo fotográfico, dão a impressão de que assistimos à encenação dos bastidores, como se o público estivesse colaborando para a criação da peça à qual assiste.

No primeiro ato, dos quatro da montagem, Konstantin (Timothy Tribuntsev) fala sobre formas novas de se fazer arte, apresentando, inclusive um texto teatral que escreveu e que, segundo Nina – a atriz que o interpreta –, é dificílimo por não apresentar um personagem vivo e, sim, uma molécula. Mas para Kóstia (Konstantin G.) a arte não precisa apresentar a vida como ela é nem como deveria ser, mas em seu estado onírico, e, feito Kóstia, Butusov parece buscar formas novas, testar diversas combinações na vasta paleta que um encenador de seu nível detém para apresentar diferentes leituras de uma mesma cena, deixando ao espectador qual a de sua predileção.

Assim como no trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch, em seu Tanztheater Wuppertal, que pedia a seus bailarinos que respondessem, em movimentos, a perguntas, frases, palavras ou qualquer outro estímulo, o elenco do Teatro "Satiricon" transmite fisicamente, com uma espécie de movimentos labanianos, a expressão visceral das paixões que comandam seus papeis. E isso não é privilégio de Marina Drovosekova, que interpreta a Menina Que Dança (e, diga-se, dança muito bem), mas de todo o elenco como vemos no final do primeiro ato, cena que trouxe à memória trechos da videodança O Lamento da Imperatriz, de Bausch, talvez por a cena ter lampejos expressionista e Pina ser discípula de Kurt Joss, pai da dança expressionista alemã.

O segundo ato começa com a mesa fartamente posta e Nina (Agrippina Steklov) chegando com a novidade de que seu pai e sua madrasta viajaram e que será possível frequentar a casa. Centro das atenções, a Arkadina de Polina Raikina não economiza na afetação das falas e dos gestos que dão ares de sua grandiloquência.

Nina, neste momento, carrega a pureza da juventude repleta de sonhos, crenças; não esconde seu fascínio por Trigorin (Denis Sukhanov), de quem é leitora fervorosa e cuja fama a deslumbra. Já Trigorin, à princípio empertigado e cheio de si (Sukhanov tem uma postura longilínea que dá uma favorável afetação ao personagem, como se ele fosse uma representação, o personagem que criou para si), depois vira, literalmente, a mesa e revela a insatisfação que tem com sua vida.

Um denominador comum aos quatro atos é o rodízio dos atores nos personagens durante a repetição das cenas, o que, além da desejada perspectiva do momento de criação da cena (performatividade?), evidencia a pluralidade de leituras cabíveis num mesmo texto.

São memoráveis o trabalho de Artyom Osipov como Dorn, Marriana Spivak como Masha, Anton Kuznetsov como Chmaraiev, embora o elenco todo conserve intacta a fé e a verdade cênicas.

A Gaivota: a transgressão do voo

por Ruy Filho
 
Foto de Ekaterina Tsvetkova


Durante um voo, uma ave pode decidir mudar de direção sem qualquer aparente estímulo. Isso não significa aleatoriedade, mas a percepção de um instante por um viés inesperado e genuíno. Então, o voo pode ser compreendido não como trajetória, é ele mais a descrição de decisões instintivas que, ligadas umas às outras, tomam o instante percorrido como sendo a forma de uma suposta linearidade.  Diferente do homem, cujo sentido de caminho é dialético, porém provável, limitado que está aos desenhos provocados pela moral e ambiência sociocultural. Assim, o percurso do homem revela-se pela leitura dos desdobramentos consequentes às decisões, nunca somente no trajeto em si. Cabe, ainda, um terceiro, uma espécie híbrida: o artista. Humano por definição, coloca-se frente ao mundo e às emoções feito ave. Contaminando-se de desejo pelo inesperado, foge ao provável e torna a necessidade de criar o estímulo necessário para provocar seus próprios desvios. Tentar entender um artista é tão impossível e inútil quanto confirmar seu percurso. Tchekhov sabia disso. E, em A Gaivota, a instabilidade dos personagens expõe a infinitude de seus desejos em se afirmarem escritores e atrizes, artistas, e seus desesperos para abandonarem o chão, os limites, e voarem.

Yuri Butusov compreendeu magistralmente a necessidade de tornar os atores aves, e por eles construiu um espetáculo aberto e sem movimentos objetivos exageradamente literais, tão comuns às montagens tradicionais. Optou, acertadamente, pelas variações dos ângulos múltiplos. As cenas repetem-se, reafirmam-se em estímulos inesperados, levando o espetáculo a ampliar a experiência do espectador, como se assistisse ao instante em que o pensamento decide mudar de rota. São variações do mesmo acontecimento, e do humano, possíveis de serem reveladas somente na poética de uma urgência. Por não haver solução única, a repetição amplia a consciência da impossibilidade. Há um borrar entre o fato e o indivíduo, e duvidar sobre quem determina quem conduziu a uma estratégia cênica eficiente e vibrante, ora irônica, divertida, ora trágica, silenciadora. Torna o teatro, por fim, o instrumento mais próximo do voar ao homem.

A montagem de Butusov amplia ainda mais a máxima contida na peça original de confrontar o entendimento e o prazer. Por muitos instantes, o entendimento se efetiva pela sobreposição acumulativa de sentidos, até mesmo opostos, que partem antes das experiências estético-narrativas, quando e durante as construções das cenas e personagens. A complexidade conceitual das escolhas simbólicas se dissolve ao assistir e ao quanto se coloca fácil o convívio com tamanha profundidade. Não é preciso conhecer Tchekhov e A Gaivota, apenas se permitir enveredar no fascinante universo de cada quadro e imagem trazidos ao espectador, enquanto a cena é construída e finalizada abertamente, sem maiores mistérios. É por essa exposição máxima que o prazer sustenta o interesse pelo entendimento, e o espetáculo se confirma uma experiência absolutamente transgressora.

Parte da transgressão se faz na dissolução do cotidiano como reconhecimento de uma narrativa comum. Como se organiza, o espetáculo subverte a iconoclastia abandonando os ídolos e ícones, voltando ao próprio homem como representação necessária de urgente deformação. Não é, portanto, a sociedade quem corrói o ser, mas o ser quem se desfaz ao se querer artista. Na impossibilidade de voar, a ave se protege do abandono e da solidão ampliando sua presença como algo violento e arriscado. E o mesmo se dá aos artistas.


Butusov e seu talentoso elenco sobrevivem ao cotidiano exauridos por uma Rússia cada vez menos possível de representação, em pleno esfacelamento iconoclasta e deformidade dos princípios estruturais. Tudo se torna algo próprio de desconhecimento. Talvez por isso, a violência cênica ultrapasse o grito e o aparente desespero físico e se firme mais como risco estético. A Gaivota não é um manifesto ou tentativa de entendimento seja lá do que for. Ao contrário. Expõe a solidão e o abandono do homem no instante de sua improvisação, em pleno voo da história. Não se sabe o que será daqui a duzentos mil anos, disse Tchekhov. Talvez nem tenhamos mais aves. Talvez nem artistas. Talvez todos estejamos aprisionados ao chão com armas nas mãos apontadas para as próprias cabeças. Ou, talvez, tenhamos conseguido aprender a voar.  Por enquanto, como possibilidade, temos o teatro e os balaços de corda. E o convívio com artistas grandiosos e genuínos como Butusov pode levar o homem a ser provocado a sentir o inesperado, a mudar de direção, trocar o foco e, simplesmente, ser diferente e seguir para onde for, para onde der, com a única certeza de nunca mais igual.



quarta-feira, 4 de março de 2015

Prática da crítica e outros olhares

Acompanhe aqui diariamente a publicação das críticas sobre os espetáculos apresentados na 2ª MITsp, escritas pelo DocumentaCena e por outros críticos convidados, e a cobertura das demais ações do eixo Olhares Críticos: Pensamento-em-Processo, Percursos em Perspectiva, Diálogos Transversais e Crítica Performativa.

O DocumentaCena é formado por:
Horizonte da Cena (Soraya Belusi e Daniel Toledo)
Questão de Crítica (Daniele Ávila)
Satisfeita Yolanda? (Ivana Moura e Pollyanna Diniz)
Teatrojornal (Maria Eugênia Menezes e Valmir Santos)

Outros críticos convidados:
Beth Néspoli
Daniel Schenker
Michel Fernandes
Ruy Filho
Welington Andrade